Notícias falsas mexem com o medo e reforçam crenças, diz jornalista especializada em fake news
No passado, a disseminação de notícias falsas foi usada como artifício de regimes políticos e grupos sociais que influenciaram diversos fatos históricos. Com a intensa conexão às redes sociais e aplicativos, hoje, esse tipo de comunicação contendo mentiras ganhou nova roupagem e novo nome: fake news. “O que muda com relação ao passado é que agora está muito mais difícil diferenciar quem consome e quem produz a informação”, compara a jornalista Ester Athanásio, autora do e-book “Fake News em debate”. A velocidade que esses conteúdos se propagam também é motivo de preocupação, já que podem trazer sérias consequências ao país, especialmente durante um período difícil como o da pandemia de covid-19. Para explicar o fenômeno das fake news e ter mais consciência na hora de receber e compartilhar essas notícias na rede, Ester Athanásio conversou com a equipe de Comunicação da APCEF-PR. Fundadora da DePropósito Comunicação de Causas e doutoranda em políticas públicas, ela concedeu a entrevista a seguir:
APCEF-PR - Sabemos que notícias falsas já existem há muito tempo: desde a época da Inquisição ou mesmo de ditaduras como as do século XX. O que esses exemplos do passado trouxeram para o presente?
Ester: A chave quando se fala de fake news é a intenção; uma notícia falsa tem como essência espalhar um boato. Quando falamos de regimes do passado, que usaram a desinformação como instrumento de manutenção de poder, vemos que isso foi feito de maneira sistemática. O que muda com relação ao passado é que agora está mais difícil diferenciar quem consome e quem produz informação. Hoje, ter um smartphone faz de todos nós potenciais produtores de conteúdo, para o bem e para o mal. Para o bem, porque o cidadão pode se manifestar sem ser tão refém da mídia. Em contrapartida, a responsabilidade ao dar uma opinião é grande. No caso do jornalista, há um profissional com treinamento e o nome assinado nas matérias, mas, quando a informação vem de um perfil anônimo, é mais difícil detectar sua origem. Além disso, no Brasil ainda é muito incipiente o letramento ou educação midiática, na qual a pessoa aprende a ler uma notícia falsa e não compartilhá-la, pois sabe que é mentira.
APCEF-PR - Então as redes sociais tiveram um papel importante na popularização das fake news?
Ester: Com certeza. Sempre existiram boatos para enganar as pessoas, como nas antigas campanhas eleitorais, quando havia uma efervescência de mentiras sobre um candidato ou outro. Hoje, porém, em uma comunicação de massa que se multiplica e tem capilaridade, o controle dessas informações é mais difícil. Um estudo recente da revista Science revelou que uma notícia falsa tem 70% mais chances de repercutir do que uma informação verdadeira. Isso acontece porque geralmente as notícias falsas são mais apelativas, mexem como o medo e reforçam crenças pré-estabelecidas, o que pode não acontecer diante de uma verdade.
APCEF-PR - O historiador Marc Bloch disse que um erro só se propaga se encontrar um caldo de cultivo favorável na sociedade. Você concorda com ele?
Ester: Tenho de concordar com essa afirmação e é por isso que bato na tecla do letramento midiático. É importante ter uma legislação e mecanismos para controlar a desinformação, mas acredito muito na educação e na conscientização das pessoas, para que elas entendam esse universo midiático e suas responsabilidades no circuito da informação, em que tudo o que publicamos e recebemos tem relevância. Não se trata, porém, de censura. A divergência é sempre saudável, o que não existe é o direito à mentira. A verdade é o primeiro compromisso legítimo para um debate sadio.
APCEF-PR - Neste período de pandemia, você acredita que as fake news encontraram um terreno fértil para sua propagação?
Ester: Acredito que sim, juntamente com outros processos sociais que aconteceram no começo de 2020. Existe um contexto midiático e tecnológico muito mais acessível às pessoas, o que tornou as trocas sociais entre elas mais evidentes no ambiente digital. Tudo isso levou ao que chamamos de “infodemia”, que é esse momento de excesso de informação do século XXI, nem sempre acompanhado de qualidade ou de uma comunicação. O pensador francês Dominique Wolton diz que nós temos muita informação e pouca comunicação, ou seja, são muitos dados gerados, mas poucas trocas sociais entre as pessoas. Temos ainda a instrumentalização política desse momento que vivemos. Já existia um processo de polarização nesse setor, que foi trazida para as redes sociais, o que afetou todos os debates da pandemia, como o fechamento ou não do comércio. Aqui tem um terreno muito fértil para as fake news, já que as pessoas estão com medo e vulneráveis com a saúde e as questões econômicas, de emprego, entre outras.
APCEF-PR - A sua agência, DePropósito, lançou recentemente o e-book chamado “Fake news em debate”. O que a motivou produzir essa publicação?
Ester: Trabalhamos com educação midiática desde 2018, provocados por uma onda de desinformação no campo político dos Estados Unidos em 2016, que depois chegou ao Brasil. Fomos convidados pelo Departamento de Estado americano para desenvolver uma campanha de verificação de informação e, partir dali, iniciamos vários projetos na área de combate às fake news. Quando começou a pandemia e fomos obrigados a trabalhar remotamente, percebemos uma incidência muito grande de solidariedade de ONGs e também de empresas que nunca se preocuparam com ações sociais e se comprometeram a fazer doações. Isso nos fez pensar em como nosso trabalho de comunicadores poderia também ajudar. Começamos então a trabalhar em cima dessa infodemia, pois a onda de notícias falsas sobre o vírus estava muito forte e colocando vidas em risco, já que várias pessoas não usaram máscara ou tomaram medicações equivocadas por causa dessa desinformação. Foi então que conseguimos um subsídio do governo americano para iniciar uma campanha com vários conteúdos, cuja finalização é o e-book. As dicas que estão nele servem para qualquer pessoa aprender sobre fake news e passar adiante, pois entendemos que todo mundo pode ter uma educação midiática e ensinar seu avô ou sua tia a detectar também essas mentiras.
APCEF-PR – Cite alguns casos marcantes de fake news que tiveram impactos na sociedade, especialmente negativos.
Ester: Sempre se fala das fake news na política, e isso é importante, pois pode definir os rumos de uma nação. Mas vejo vários exemplos na área da saúde que vem de antes da pandemia, como o caso das vacinas. Havia uma campanha anti-vacinação muito grande, na qual muitos pais não vacinavam seus filhos com medo que as doses pudessem causar autismo nas crianças, o que é uma mentira absurda. Lembro que, quando eu trabalhava em uma rádio, recebi sugestões de pauta de pais desesperados, querendo que nós noticiássemos aquilo como verdade. A consequência disso é que muitas doenças já erradicadas no Brasil agora correm o risco de voltar. Com a pandemia, vieram vários exemplos. Um deles é de um vídeo, no qual um cidadão se declarava ser um químico autodidata e dizia que seria melhor usar vinagre do que álcool em gel para a higiene. Eu fiquei sabendo disso pelos meus avós, que viram o vídeo no YouTube. Também tivemos várias questões sobre máscaras que supostamente vieram da China contaminadas com o vírus e estavam sendo distribuídas para a população, o que era uma mentira. Nem China nem o sistema de saúde brasileiro distribuíram máscaras. Agora imagine o medo que as pessoas sentiram ao saber disso, já que a máscara é um item básico e ainda não há vacina contra o coronavírus.
APCEF-PR - Quais são as dicas para as pessoas diferenciarem notícias falsas de verdadeiras?
Ester: A primeira questão é: se você recebe uma informação, desconfie, questione sobre quem está dizendo aquilo. E não falo do seu amigo que enviou a notícia, mas quem realmente produziu aquele conteúdo. Essa pessoa tem nome e sobrenome? Existe uma instituição por trás da qual eu consiga acessar o site? Se não existe essa fonte, é melhor desconfiar. O segundo ponto é a data, pois algo que pode ter sido verdade há dez anos, em outro contexto, hoje não é. Eu poderia pegar uma notícia de anos atrás para mudar a realidade do presente. Isso abre espaço para diferenciarmos fake news e desinformação. Por exemplo, em janeiro circulou um vídeo do Dr. Drauzio Varella dizendo que o coronavírus não era tão grave e, naquele momento, representava perigo somente para os mais idosos. Acontece que, em março, a realidade era totalmente diferente, com casos disparando e várias pessoas indo a óbito, o que fez o Dr. Drauzio adotar outra postura. Mas o que as pessoas mal-intencionadas fizeram? Usaram em março o vídeo de janeiro, tirado do contexto. Por isso é importante estarmos atentos às datas. Caso não seja possível checar nem fonte nem data, procure pela informação no seu buscador, digitando algumas palavras-chaves. Se nenhum veículo de comunicação profissional publicou a notícia, é porque ela já foi desmentida; ali também é possível encontrar links para as verdadeiras informações. Se mesmo assim estiver na dúvida, não compartilhe. O Ministério da Saúde, inclusive, lançou um número de WhatsApp, pelo qual as pessoas podem mandar informações e perguntar se elas são verdadeiras ou não. O órgão checa esses conteúdos e publica no seu site se eles estão corretos.
Para conhecer o e-book “Fake news em debate”, acesse o site www.depropositocomunica.com. Ele está disponível gratuitamente.